Infância sobrecarregada

Brincar é coisa séria: tarefas e pressão excessivas estão adoecendo as crianças

Estudos indicam que o número de crianças com problemas relacionados a estresse e ansiedade é alarmante


Publicado em 30 de novembro de 2021 | 03:00
 
 
 
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Pai de Dom, de 9 anos, e dos gêmeos Bem e Liz, de 5, frutos do relacionamento com a atriz Luana Piovani, o surfista Pedro Scooby usou suas redes sociais para se queixar sobre o que ele entende como um excesso de cobrança sobre os próprios filhos. “Dever de casa é muito chato. A criança já fica de segunda a sexta na escola, chega no fim de semana e tem que fazer dever de casa? O Dom e o Bem, por exemplo, estudam das 9h às 16h. Chegam em casa e têm que fazer dever de casa. Qual vai ser a memória da criança? O que ela fez na infância dela? Estudou? Só?”, disse o atleta em uma série de vídeos publicados em sua conta no Instagram. “Tem outras coisas que são tão importantes quanto estudar, que a criança precisa explorar também, como arte, esporte”, argumentou. 

Em seu desabafo, Scooby não está só. Ele representa outros diversos pais, mães, educadores e profissionais de saúde que têm expressado preocupação com o aumento do número de casos de crianças sofrendo com distúrbios de estresse e de ansiedade. Em Portugal, onde o surfista vive com os filhos, o site Educare, especializado em educação, divulgou, em 2019, um estudo da instituição alemã Pronova BKK que faz um retrato dessa realidade: mais do que uma em cada três crianças nos primeiros anos de escola sofre várias vezes por mês de cansaço, dificuldade de concentração e falta de motivação; entre as crianças de 6 a 10 anos, um terço dá sinais de nervosismo e inquietação. Em quatro semanas na escola, uma em cada cinco reclama de dores de cabeça ou dores abdominais que não têm explicação clínica aparente. 

Outras pesquisas já vinham indicando esse mesmo cenário. Em 2016, o Children’s Society, organização britânica de proteção infantil, ouviu famílias com filhos entre 8 e 16 anos. À época, os estudiosos ficaram surpreendidos ao constatar que, conforme o relato dos pais, 22,7% das crianças apresentavam sintomas ansiosos, 25,9% tinham dificuldade de manter a atenção e 21,7% apresentavam problemas comportamentais. Os resultados levaram os pesquisadores a mudar o foco da investigação, que, inicialmente, era sobre a incidência de problemas respiratórios na infância. 

Para a psicóloga e psicopedagoga Roneiga Gontijo Couto, à luz de sua própria experiência clínica, a preocupação de Scooby é legítima. “Hoje, o perfil de crianças que mais aparece no consultório apresenta sintomatologia ligada ao estresse e à ansiedade”, reconhece. 

A especialista ainda descreve como, no afã de acelerar o desenvolvimento da criança, ao incrementar a educação formal com diversas atividades extracurriculares, é curioso notar como o excesso de estímulo pode, na verdade, tornar a aprendizagem mais difícil para os pequenos. “Em muitos casos, quando vamos investigar, as dificuldades de atenção e de assimilação estão ligadas a uma cobrança desmedida tanto em casa quanto na escola. Uma pressão que algumas crianças não conseguem e que vai repercutir em constantes relatos de dor de cabeça, de dor de estômago, cansaço excessivo, falta de motivação para o estudo e, às vezes, agressividade”, explica, acrescentando que os adultos responsáveis devem estar atentos a esses sinais não verbais, que são indicadores de um adoecimento mental e emocional dos pequenos. 

Roneida pondera que, tentando evitar a sobrecarga de tarefas e de cobranças, é preciso cuidado para não cair na armadilha de trocar o exagero pela ausência de estímulos. “Há tanto o risco de se pecar pelo excesso como pela falta. Por isso, os pais precisam ter consciência da importância da vivência da infância para a formação do sujeito. Nesse período, estão entre as necessidades básicas das crianças o cuidado e a construção de vínculo afetivo, no que as brincadeiras são fundamentais. Partindo desse princípio, e entendendo que cada um irá se desenvolver no seu ritmo, devemos, como educadores, estar atentos às demandas específicas de cada faixa etária”, avalia. 

“É crucial buscar o equilíbrio, de forma que a criança seja estimulada, mas também que tenha tempo de viver a infância. E isso significa ter momentos para brincar, porque é brincando e interagindo que vamos incentivar o desenvolvimento dos pequenos”, destaca. “Mas é também importante frisar que estamos falando aqui de brincadeiras lúdicas, que não devem ser confundidas com momentos de interação com a tecnologia”, sublinha a psicopedagoga, que recomenda que os pais encontrem espaço na agenda para se fazer presentes na infância de seus filhos. “Não estou falando em tempo integral dedicado a eles, mas em tempo de qualidade para saber ouvi-los e compreendê-los, construindo uma interação real e estabelecendo um vínculo significativo. Fazendo isso, estamos suprindo necessidades básicas da infância”, arremata. 

Origem do excesso 

“A carga excessiva de tarefas escolares e extraescolares pode proporcionar a negação do direito da criança de viver plenamente a sua infância, comprometendo o tempo livre e o brincar, acarretando manifestações psicoemocionais as quais podem interferir no desenvolvimento e na aprendizagem da criança”. Essa é uma das principais constatações da pedagoga Ana Paula Maia Ferreira, que investigou como a cobrança exagerada pode ser nociva para os pequenos e levantou hipóteses sobre a origem de tanto excesso em seu trabalho de conclusão de curso (TCC) apresentado à Faculdade de Pedagogia, do Campus Universitário de Castanhal, da Universidade Federal do Pará (UFPA), em 2019. 

“O interesse pela realização desta pesquisa surgiu devido às experiências de estágio em uma escola de ensino privado, na qual tive a oportunidade de estagiar em turmas de educação infantil e séries iniciais do ensino fundamental. Nesta ocasião, pude observar a dinâmica do trabalho docente, as crianças em suas relações e aprendizagens, bem como a interação dos familiares com a escola, enfim, observei o cotidiano escolar. Dentre essas observações, percebi que nesta escola o ensino é pautado na preparação para os processos seletivos de vestibulares”, anota Ana Paula em “Infância sobrecarregada: excesso de estudos e atividades extracurriculares na vida da criança”. 

Para ela, apesar de o foco em resultados se mostrar nocivo para a infância, é esse método de formação que muitas famílias buscam para seus filhos. “Muitas delas, principalmente de classes média e alta, projetam investimentos nos aprendizados escolares e não escolares, em atividades extracurriculares, com objetivo de preparar as crianças para tornarem-se bem-sucedidas futuramente. Nessa lógica, um turno apenas de estudo não seria mais suficiente. Além das tarefas de dever de casa que muitas trazem, algumas crianças enfrentam rotinas intensas com turno, contraturno, dentro e fora da escola, aprisionadas em dinâmicas de vida pesadas visando ao futuro sucesso profissional e financeiro”, disserta. 

Ana Paula também aponta que, em alguns casos, o responsável pela criação da criança tenta transferir para a vida dela tudo aquilo que um dia almejou concretizar, ampliando essa pressão por um esforço contínuo, pesando contra o pequeno o receio de frustrar as expectativas nele depositadas. O excesso também pode vir da tentativa de suprir uma falta. “Devido ao trabalho e a outras atividades presentes na rotina de muitas mães e muitos pais, o tempo para ficar com os filhos, acompanhá-los, tornou-se reduzido”, observa a pedagoga, sinalizando que os cursos de línguas estrangeiras, de educação financeira e empreendedorismo, de informática, reforço escolar, aulas de música, dança, teatro, futebol, artes marciais, natação, e outros tantos exemplos de atividades extracurriculares podem parecer, aos responsáveis, uma forma de suprir a própria ausência. 

Famílias ansiosas. “Conforme o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (Pnaic), todas as crianças devem ser alfabetizadas até os 8 anos, ao término do terceiro ano do ensino fundamental. A LDB estabelece em seu artigo 29 que a educação infantil (primeira etapa da educação básica) tem como objetivo desenvolver integralmente os aspectos físico, psicológico, intelectual e social da criança de até 5 anos, de forma a complementar a ação da família e da comunidade”, anota Ana Paula Maia Ferreira, para, na sequência, lembrar como famílias cada vez mais ansiosas por verem sua prole se desenvolvendo “acreditam que o fato de as crianças aprenderem a ler por volta dos 4 ou 5 anos significa que elas serão boas leitoras e terão um excelente desempenho escolar porque foram adiantadas”. Ela adverte que nem sempre é o que acontece. 

Superestimulação. “O estímulo é interessante; a superestimulação, não”, determina a pedagoga, que adota um tom crítico a um mundo “repleto de pequenos executivos que possuem muitos compromissos e responsabilidades”. “Essas crianças são conduzidas por pais apressados, os quais têm grande satisfação em exibir seus filhos precoces. A sociedade subverteu os valores, priorizando o sucesso profissional em detrimento da realização pessoal. Um dos principais motivos para que essas crianças tenham suas rotinas repletas de atividades escolares e extraescolar é justamente a preocupação dos familiares com o futuro delas. Mas e o presente da criança? O excesso de atividades pode preencher o seu tempo. Desse modo, será que ela está tendo oportunidade de vivenciar integralmente a infância?”, questiona.

Brincar é direito. Citando estudiosos da pedagogia, Ana Paula é incisiva ao dizer que brincar é algo fundamental na infância. “É por meio da brincadeira que a criança adquire mobilidade corporal, desenvolve a coordenação motora, conhece, aprende, imagina, cria, interage com os outros e com o meio, expressa as suas emoções, se coloca no mundo, como produtor de vida, de mundo, de cultura infantil”, avalia, lembrando que a legislação brasileira, através do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), garante, reconhece e ampara a prática da brincadeira, bem como a vivência de momentos de lazer e diversão na fase infantil e na adolescência. O marco legal determina em seu artigo 16, incisivo IV, o direito à liberdade da criança para brincar, praticar esportes e divertir-se.

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